quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Elena Ferrante ou Uma história universal do feminino

Se eu pudesse escolher ser alguém além de mim mesma eu escolheria ser a Elena Ferrante.


Maravilhada é o adjetivo que melhor define a maneira como me senti lá pelas tantas páginas de A amiga genial, primeiro volume da chamada Série Napolitana (A amiga genial, História do novo sobrenome, História de quem foge e de quem fica e História da menina perdida) e meu primeiro contato com a escritora italiana de identidade misteriosa.

Enquanto lia A amiga genial eu me deslumbrava a todo momento com a qualidade da escrita e tentava lembrar quando tinha sido a última vez que um escritor havia me arrebatado de forma tão contundente.

Pensei em Lygia Fagundes Telles, Érico Veríssimo, Rosa Montero, João Guimarães Rosa, autores cujos tons pareciam pulular daquele texto que, não obstante a evocação inexplicável de vozes familiares, revelava a cada frase algo de inaudito, num encontro paradoxal entre o conforto gerado por aquilo que nos é conhecido e o frisson causado pelo contato com o desconhecido.

A amiga genial trazia à tona, com consistência e fluidez, personagens e contextos que de alguma forma já estavam em mim, entranhados talvez nas dobras do inconsciente.

Nos volumes seguintes da Série Napolitana a marca da escrita extraordinária de Elena Ferrante (seja ela quem for) foi ficando ainda mais profunda e a trajetória das duas amigas protagonistas dos romances, Lila e Lenu, acabou se entrelaçando à história política, social e econômica do mundo ocidental de forma tão natural que não pude deixar de notar o talento da autora para entremear acontecimentos ordinários da vida cotidiana com outros de alcance mais amplo e mais complexo.

Mas o que havia de mais fascinante na Série Napolitana era o sentido do feminino. Ao longo da trajetória de Lila e de Lenu pude enxergar a mim mesma, minha mãe, minhas avós, tias, primas, amigas e conhecidas, como se as vidas das duas personagens fossem espelhos que refletissem apenas as imagens essenciais daquilo que é existir como mulher. Embutida na história particular de Lila e de Lenu estava a história universal do feminino. 

História que aliás parece não poder ser inteiramente pensada sem que esteja associada a outra, tão antiga quanto infame: a do machismo.

Ainda que subjacente aos acontecimentos gerais e particulares que articulavam a trajetória das duas protagonistas da trama, o machismo saltava das páginas da Série Napolitana assim como no mundo real salta aos olhos de qualquer observador atento à dinâmica da vida em sociedade.

Se Elena Ferrante é de fato uma mulher eu não sei, mas não consigo imaginar como um homem poderia compreender em toda a sua inteireza o que significa existir sob a condição feminina num mundo como o nosso. A Série Napolitana dá boas pistas a esse respeito.

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